Os princípios do Direito Privado
Breves referências
1. O princípio da igualdade jurídica
a) O conceito de personalidade
b) As qualidades relevantes a considerar
c) As concretizações da lei
2. A autonomia privada
a) O primado da liberdade de vontade
b) A correlação entre autonomia privada e Direito Privado
c) As concretizações da lei
3. O princípio da protecção dos mais fracos
a) A necessidade de um critério de correcção em consequência de desigualdades
do poder negocial
b) A abordagem económico-social da desigualdade de poder
c) As concretizações da lei
1. O princípio da igualdade jurídica
O Direito Privado rege-se por princípios moldados ao longo de muitos séculos (também podíamos falar de dois milénios), sendo o primeiro deles a igualdade jurídica. Igualdade jurídica de quem e perante quem?: do homem perante a lei.
a) O Direito Privado parte do princípio de que todos os homens (pessoas singulares, na terminologia do Código Civil português) possuem personalidade e capacidade jurídica iguais uma vez que têm igual dignidade. O homem não possui valor – o valor é um critério aplicável a mercadorias – o que ele possui é dignidade. Esta qualidade significa que o homem é um ser livre e auto-responsável.
b) A liberdade constitui o núcleo, a essência, da dignidade. Neste sentido, os homens devem-se mutuamente respeito na sua qualidade de pessoas com igual dignidade e personalidade. (Daí decorre que estamos perante uma discriminação precisamente em todos os casos de desrespeito ou de diminuição da dignidade do outro.) Aliás, a própria imagem que o homem tem de si mesmo reflecte-se no seu comportamento para com o outro. Faz uma diferença essencial se o homem se considera como sendo um filho de Deus, ou um animal falante, ou um macaco desenvolvido, ou apenas como um conjunto de células vivas.
Ora bem, o Direito Privado parte do princípio da igualdade jurídica de todos os homens não obstante as suas diferenças naturais, de origem, de raça, de crença ou convicções, de condições sociais, etc. Isto não significa que estas diferenças sejam negadas, uma vez que existem, mas "apenas" que não devem causar qualquer tratamento desigual perante a lei. A igualdade jurídica do homem perante a lei é concebida, nestes termos, como um critério formal.
c) O Código Civil, que consagra o Direito Privado comum, observa o princípio da igualdade jurídica com grande rigor. O artigo 66.º, n.º 1, constata "a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida" facto esse que a lei considera como evidente, um dado adquirido, que há-de aceitar. Com isso, a personalidade jurídica não está à disposição do legislador do Direito Privado.
Na mesma esteira situam-se os artigos 67.º (capacidade jurídica), 68.º (termo da personalidade), 70.º (tutela geral da personalidade), 130.º (aquisição e efeitos da maioridade), 1600.º (capacidade para casar), 1671.º (igualdade dos cônjuges), 1850.º (capacidade para perfilhar), 2188.º (capacidade para testar) e outros mais1. À parte as regras do direito internacional privado, o Código Civil só fala uma vez em "portugueses" – e não podia deixar de o fazer – e isto a respeito de um assunto de índole administrativa: o registo do casamento (ver os artigos 1651.º e 1654.º).
Assim sendo, o Código Civil não discrimina ou favorece as pessoas, seja com base na situação social, na origem racial ou étnica, seja com base em outro critério qualquer.
2. A autonomia privada
- O segundo princípio do Direito Privado é o da autonomia privada. Esta, como é geralmente entendida hoje, consiste no poder da conformação autónoma das relações jurídicas privadas de acordo com a livre vontade das partes intervenientes. A autonomia privada está correlacionada com o princípio da autodeterminação do homem no que respeita à conformação das suas relações jurídicas e este princípio, por seu lado, é a consequência da sua liberdade e dignidade.
Assim, é fácil ver-se que a autonomia privada flúi do princípio da liberdade do homem. Nestes termos, a ordem jurídica privada reconhece a todos, a todos os homens, o direito de estabelecer livremente as suas relações jurídicas, como eles entenderem por bem, de acordo com os seus interesses, preferências, inclinações, convicções religiosas ou morais, apetências sociais ou económicas. Deste modo, o Direito Privado respeita os interesses individuais e as diferenças (ou desigualdades) naturais entre os homens e a multiplicidade dos seus modos de querer, sentir e agir, correspondendo assim ao princípio da organização individualista da sociedade civil. É, neste contexto, elucidativa a afirmação "stat pro ratione voluntas".
- Obviamente, sendo a autonomia privada um princípio do Direito Privado, ela apenas pode concretizar-se dentro dos limites da lei. Basta ver o disposto no n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil: "Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos (...)." Quer dizer, a autonomia privada e Direito Privado estão entrelaçados e correlacionados, existindo este em função daquela. Neste sentido, os limites da lei podem referir-se ao próprio estabelecimento das relações jurídicas bem como ao conteúdo das mesmas.
- Podem enunciar-se como limites à liberdade de celebração do contrato, por exemplo, os artigos 261.º (proibição do negócio consigo mesmo), 579.º (proibição da cessação de direitos litigiosos), 877.º (proibição da venda a filhos ou netos), 946.º (proibição da doação por morte), 953.º e 2192.º a 2198.º (indisponibilidades relativas), 1699.º (restrições ao princípio da liberdade de convenção) etc., e como limites relativos à fixação do conteúdo do contrato podemos mencionar os exemplos dos artigos 280.º (negócio com conteúdo impossível, ou com conteúdo contrário à ordem pública, ou ofensivo os bons costumes), 282.º a 284.º (negócios usurários), 334.º (abuso do direito) e outros mais, sendo certo que ainda existem, tanto em relação à liberdade de celebração como em relação à liberdade da fixação do conteúdo do contrato, limitações em muita legislação especial.
Como se vê pelas disposições legais referidas, o Direito Privado tem por obrigação defender a ordem pública e os bons costumes, ou seja, os valores morais positivos, vigentes em cada sociedade, contra todas as relações jurídicas estabelecidas em seu desrespeito, as quais não pode aceitar, precisamente por não se situarem dentro dos limites legais traçados pelo ordenamento jurídico privado. Todavia, o que o Direito Privado não pode é impor convicções de ordem moral, religiosa ou valorativa, pois isto estaria em contradição com a sua própria vocação, a natureza secular do direito, a separação entre direito e moral e a liberdade de consciência.
3. O princípio da protecção dos mais fracos
a) A autonomia privada, baseada na premissa da igualdade jurídica de todos os homens, encontra-se desde sempre perante o dilema de, na altura do estabelecimento de uma dada relação jurídica concreta, poder existir um desequilíbrio de poder negocial entre as partes de tal modo que fica prejudicada a composição adequada dos interesses em jogo. Na verdade, os princípios de igualdade formal e autonomia privada ostentam, na sua abstracção, alguma ousadia quando comparados com determinadas constelações reais em que as pessoas se encontram. Porém, o problema do desequilíbrio de poder negocial e a necessidade de o resolver nunca foi ignorado pelo legislador do Direito Privado. A questão era apenas a de saber como o legislador havia de proceder para obter resultados justos.
Para este efeito, o princípio da autonomia privada tem vindo a ser corrigido com base em critérios materiais (portanto, visando uma situação de igualdade material), atendendo a situações típicas ou tipificáveis, que são caracterizadas pela existência de uma parte mais fraca. Neste sentido, a correcção exprime uma preocupação social do legislador e leva a excepções ao princípio da igualdade jurídica formal. Necessitando, como excepção que é, desta maneira de uma justificação, a concretização do princípio da protecção dos mais fracos constitui um problema extremamente difícil para o Direito Privado, sobretudo tendo em conta que a protecção, muitas vezes, não é só necessária como é mesmo imprescindível. Em todo o caso, e isto nunca pode ser esquecido, cada limitação da autonomia privada implica uma limitação da liberdade.
b) Discute-se quem há-de ser considerado como sendo tipicamente mais fraco. Parece que a abordagem da questão deve ser feita a partir de critérios económico-sociais: São necessárias restrições à autonomia privada – uma vez esta não está à disposição da autonomia do mais forte, mas ao cuidado do legislador que a protege em função da liberdade do homem auto-determinado – para restabelecer os equilíbrios nos casos em que o poder negocial de uma das partes anula a autonomia da outra de modo que o conteúdo da relação jurídica reflecte o poder superior da parte mais forte. Deste modo, a protecção do mais fraco deveria resultar, no fundo, num aumento da liberdade decisória deste. Quer dizer, a liberdade do processo negocial deve ser garantida.
O que caracteriza a situação do mais fraco é o desequilíbrio de poder em seu desfavor, situação essa que limita a sua liberdade. Mas daí não se deve tirar a conclusão de que o mais fraco, apenas por ser mais fraco, tem desde logo razão.
Para equilibrar a desigualdade de poder não é possível fazer desaparecer o poder; este existe. Contudo, o poder deve ser redistribuído ou deslocado, ou para dar força à própria posição do mais fraco, conferindo-lhe mais liberdade, ou para ser alocado a instâncias terceiras. O meio clássico é o controlo do conteúdo da relação jurídica estabelecida por via judicial.
c) São considerados casos típicos de desequilíbrio de poder negocial, nomeadamente, o caso clássico da vítima do negócio usurário, o trabalhador por conta de outrem, o arrendatário face ao senhorio2 (e aqui deveriam ocupar um lugar de especial atenção as famílias com mais filhos), o desempregado à procura de um emprego, mas não necessariamente e sempre o consumidor (embora a necessidade da sua protecção tem vindo a ser enaltecido como um objectivo da maior grandeza). Em relação a este bem devia ser lembrado, primeiro, o brocado romano emptor curiosus esse debet, ou seja, cabe ao consumidor procurar as informações necessárias, antes de se fazer dele um mais fraco que necessita de ser protegido, desresponsabilizado como ficou da obrigação de ser cuidadoso.
Há uma tendência, que se tem vindo a acentuar, no sentido de abrir cada vez mais o leque daqueles que devem ser considerados como mais fracos. Esta tendência resulta simultaneamente de uma questão de desconfiança e de uma questão de poder: por um lado, desconfia-se da resolução do problema da protecção dos mais fracos com base nos princípios e disposições legais do Direito Privado, que pressupõem o homem auto-determinado, por outro lado confia-se na actuação benéfica de entidades públicas e no seu poder sobre o homem tutelado.
Por isso, para proteger os mais fracos não são fortalecidos estes mesmos mas o poder é alocado a instâncias terceiras que pertencem de preferência à administração pública ou estão a ela ligadas. Estão acima das partes negociadoras e justificam a sua razão de ser – e o seu próprio poder – precisamente com a existência dos mais fracos. Do ponto de vista do poder estadual, que desconfia da solução de problemas por via autónomo-privada, há a conveniência de existirem cada vez mais fracos para fundamentar assim a necessidade de aumentar os poderes da administração pública.
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1) Quanto às pessoas colectivas – de natureza diferente das pessoas singulares – podem ser mencionados os artigos 158.º (aquisição da personalidade), 160.º (capacidade jurídica), 163.º (participação no tráfico jurídico negocial), 165.º (responsabilidade civil, extracontratual), 182.º e 192.º (extinção da pessoa colectiva). Sendo as pessoas colectivas criações do Direito (cf. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I., 4.ª reimpressão, Coimbra 1974, pág. 52), a sua personalidade está à disposição do legislador que a atribui ou retira de acordo com os critérios da lei.
2) Isto em termos gerais. Contudo, a legislação que congelou as rendas de casa fez com que, em muitos casos, o senhorio acabasse por ser o mais fraco (sem falar dos efeitos nocivos do congelamento das rendas para a conservação do parque habitacional: aqui a protecção do mais fraco resultou numa degradação da substância patrimonial com o correspondente empobrecimento de toda a comunidade).
NB: Este apontamento é um texto de apoio que foi sugerido pelo Professor Dr. Henrich Ewald Horster, na aula de Teoria Gerál do Direito Civil, IIº ano do Curso de Direito no ano lectivo de 2010/2011.
Foi colocado por mim com intenção para toda agente pode ter acesso e além disso, para eu possa consultar em qualquer momento e em qualquer lugar onde tem acesso à internet.
By
Paresma D'aquinho
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